Princípio de realidade

Gustavo Dutra
2 min readMay 14, 2017

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somem de mim os assuntos mergulhados em cloro e cândida,
[ um id de brancura límpida, sem vida, sem bactéria, sem gosto,
[ sem tom, sensato
somem de mim os afrescos pintados à mão livre nas paredes
[ que circunscrevem os domínios hostis do superego da imaginação
somem de mim os resquícios moribundos de uma criança que
[ outrora brincou nos jardins seguros do ego

mudo para ser um ser humano melhor, mudando quem eu sou,
[ como eu ajo, como eu falo, como eu olho, como eu sento e como eu como
mudo conforme as corporações conduzem a valsa do crescimento
[ e do faturamento bruto a fim de me adaptar ao trabalho — que é de onde
[ vem o dinheiro que me sustenta
mudo, me mutilo e me deformo, me faço caber dentro das expectativas
[ inevitáveis do homem empregador

ando curvado pela fadiga do peso da responsabilidade de guiar a carreira
[ profissional de quem vê nela toda a sua importância na vida,
[ mesmo eu não vendo valor algum
ando maltrapilho, vestido apenas com as tramas shakespearianas
[ cozidas pelos que me cercam — e a mim são caros —
[ em rocas populares de uso caseiro
ando preocupado com a chave que não abre, a luz que não liga,
[ o esgoto que não escorre, a água que não cessa, o cheiro que levanta do
[ ralo, a pia suja e a banheira imunda dos banhos do dia a dia

o mundo tira de mim tudo de lírico e de pavoroso e errado e de essência
o mundo nega a mim a possibilidade inevitável do erro
o mundo me distrai, sobrando pouco tempo de ócio necessário
[ para mergulhar na metafísica duvidável do ser

somem de mim as fagulhas esparsas e fracas de uma possível poesia
[ e me sobra apenas o lamento em versos extensos e longos e prolixos
[ e demorados de quem perde as esperanças sem realmente perdê-las
mudo apenas para o mundo, já que é o mundo que me quer mudado,
[ mas não mudo para mim
ando disfarçando o terrível monstro selvagem, escroto e miserável
[ que se esconde atrás do ator fracassado que vagueia as colcheias
[ do palco da sociedade

o que for necessário, eu mudarei.

do mundo pra fora, sou como o camaleão ameaçado em campo aberto
[ cujos raios de sol de um dia desprovido de nuvens atravessam e
[ queimam no calor seco dos desertos arenosos.
do mundo para dentro, serei sempre um explorador curioso, de renome,
[ que avança nas cavernas escuras do inconsciente onde moram morcegos
[ e há cheiro de fezes, nas montanhas geladas e escorregadias dos alpes
[ do corpo físico e nas matas fluviais verdes e esparsas do raciocínio lógico,
[ anotando minhas descobertas miseráveis em folhas amareladas e sujas
[ de meu caderno de viagem.

Conheça meu canal no YouTube e a publicação um barco ao mar para acompanhar meu trabalho sobre criação poética ;)

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Gustavo Dutra
Gustavo Dutra

Written by Gustavo Dutra

Autor de "Introversos" (2016) e "ao antropoceno brevíssimo aceno ou um pot-pourri pro povo rir" (2020). Curto Poema (newsletter) e "um barco ao mar" (YouTube)

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